O papel das mulheres como cuidadoras em nossa sociedade

Em muitas famílias, o cuidado tem nome, rosto e gênero. Desde cedo, as mulheres aprendem — explícita ou silenciosamente — que cuidar é parte do que se espera delas. Cuidar dos filhos, dos pais, dos avós, dos doentes, da casa, das emoções. Essa herança cultural atravessa gerações e molda o cotidiano de milhões de brasileiras, tornando o cuidado tanto um gesto de amor quanto uma forma de sobrecarga invisível.

O cuidado como construção social

Historicamente, o papel da mulher foi associado ao espaço doméstico e ao trabalho reprodutivo — aquele que mantém a vida em funcionamento, mas raramente é reconhecido como trabalho. A pesquisadora Helena Hirata, referência nos estudos de gênero e trabalho, chama atenção para o fato de que as mulheres continuam sendo as principais responsáveis pelo cuidado de pessoas dependentes, mesmo quando inseridas no mercado formal.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua/IBGE, 2022), as mulheres dedicam, em média, 9,6 horas a mais por semana que os homens às tarefas domésticas e de cuidado. Esse número cresce significativamente em famílias com idosos, pessoas com deficiência ou doenças crônicas — como o Alzheimer.

O Alzheimer e o peso do cuidado invisível

No contexto das doenças neurodegenerativas, a figura da cuidadora é quase sempre feminina. Estudos da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) indicam que cerca de 80% dos cuidadores de pessoas com Alzheimer no Brasil são mulheres, geralmente filhas ou esposas.

Esse cuidado exige não só tempo e energia, mas também preparo emocional, físico e financeiro. Muitas cuidadoras abandonam o emprego, suspendem projetos pessoais e enfrentam altos níveis de estresse e exaustão. E, ainda assim, esse trabalho segue sendo pouco valorizado — social, econômica e institucionalmente.

Entre o amor e a responsabilidade

O cuidado é, sem dúvida, um gesto de amor. Mas quando ele se torna uma obrigação exclusiva de um gênero, deixa de ser escolha e passa a ser fardo. É preciso romper com a ideia de que as mulheres “cuidam melhor por natureza” e entender que o cuidado é um ato humano, não feminino.

Homens, políticas públicas e instituições precisam assumir corresponsabilidade. O envelhecimento populacional, somado ao aumento das doenças crônicas, exige novas formas de pensar o cuidado — distribuído, profissionalizado e sustentado por redes de apoio.

Cultura, memória e reconhecimento

Projetos culturais como Barbiô ajudam a lançar luz sobre esse tema ao trazer o cuidado para o campo da arte e da sensibilidade. No livro, o vínculo entre a neta e o avô com Alzheimer revela a ternura e a força que atravessam o ato de cuidar — sem idealizações, mas com profundidade emocional.

Quando a menina da história se vê diante da fragilidade do avô, ela aprende que cuidar não é apenas um dever, mas um gesto de resistência e amor. É nessa dimensão simbólica que o cuidado se transforma em aprendizado coletivo — e não em prisão individual.

Cuidar é um verbo de todos nós

Para que o cuidado deixe de ser sinônimo de sacrifício feminino, é preciso reeducar a sociedade:

  • Valorizar economicamente e socialmente o trabalho do cuidado.

  • Criar políticas públicas que garantam suporte às cuidadoras e cuidadores familiares.

  • Promover educação emocional e empatia desde a infância, para que o ato de cuidar seja compartilhado.

Cuidar é manter a memória viva, é sustentar o outro e a si mesmo. Mas só seremos uma sociedade realmente cuidadora quando esse gesto deixar de ter gênero.